Nossa viagem terminou no Rio de Janeiro. Chegamos num dia chuvoso, debaixo de um aguaceiro que parecia acabar com tudo. E com tudo não acabou, mas estragou uma boa parte. Ruas que pareciam rios, carros sendo arrastados, gente querendo se salvar, isso foi a nossa acolhida à cidade maravilhosa. Mas, nem mesmo aquilo nos desanimou. Pegamos nossas malas e fomos para um hotelzinho simples que mais parecia aquelas tabernas dos velhos filmes. Ficamos alguns dias naquele hotel a procura de trabalho. Andreia logo encontrou um serviço de manicure num salão de beleza, eu fui parar na obra de um edifício. Fomos morar num quartinho fedido nos fundo da casa de uma velha aposentada. Compramos um colchão, um fogão velho e duas panelas.
O amor vencia aquela miséria na qual nos enfiamos. Passamos meses para conseguir comprar alguns móveis e encontrar uma casinha melhor, encontramos uma num bairro afastado, que nos abrigava a pegar quatro ônibus para chegar ao trabalho, mas, naquele momento, ainda não havia opção e nos resignamos à nossa vida dura e cruel.
Um ano depois, já havíamos nos estabilizados. Eu conseguira um emprego em uma farmácia, ela costurava em casa, depois que conseguimos comprar uma máquina de costura velha que passei uma semana tentando fazê-la costurar. Por fim, não consegui e tivemos que pagar cem Reais para um profissional concertar. A máquina ficou boa e em pouco tempo Andreia costurava todo tipo de roupa para os nossos amigos do bairro, sua fama aumentou e em pouco tempo a nossa pequena casa já não tinha mais espaço para abrigar tantos pacotes com roupa e cortes de tecidos.
A vida se tranquilizou mesmo depois do segundo ano. Já tinha até mesmo conseguido financiar uma pequena casa. Mudamos para nossa nova casa num final de semana. Nossos novos vizinhos eram gente boa, contamos com ajuda do Juquinha que morava ao lado e do Antônio, um amigo de Juquinha. Depois disso fizemos amizades com os dois rapazes, mais jovens do que eu, brincalhões e que eu vivia insinuando que eram gays. Eles frequentavam nossa casa, Juquinha sempre só e Antônio com sua namorada, Juliana. Fazíamos churrascos em casa pelo menos uma vez por mês, reunindo-nos pra ouvir pagode e jogar baralho. Era muito divertida nossa vida. Pegamos gosto pelos salões de dança, íamos quase todos os sábados à noite. Enfim, fomos felizes por muito tempo.
Mas no terceiro ano, as coisas começaram a mudar. Talvez a culpa tenha sido um pouco minha. Eu mudara muito. Antigamente chegava em casa, abraçava Andreia, dava-lhe um beijo, conversávamos e ríamos como um casal de namorado, depois do terceiro ano, eu entrava em casa, mal dizia boa-noite, tomava banho, jantava, assistia ao jornal, ou ia para a rua, jogar conversa fora e ver a mulher dos outros passar, ou dormir. Andreia começou a reclamar da minha atitude, dizendo-me que eu havia mudado muito. Eu respondia-lhe que eu era o mesmo e que ela é quem estava procurando confusão. Passamos a brigar frequentemente, nos agredíamos com palavras, não digo que eu era o santo, porque não era, ela também não ficava atrás. Foi um pulo para eu encontrar uma amante. Saia do serviço e ia me encontrar com Sara, chegava em casa, bêbado, com o cheiro de outra mulher. No começo Andreia brigou muito, depois ela passou a ficar calada, triste, amargurada, e eu, que já não me importava mais com ela não liguei a mínima.
Uma tarde cheguei em casa e não a encontrei. Corri ao quarto e olhei o guarda-roupa, suas coisas estavam todas lá. Nos últimos dias eu passei a temer que Andreia me abandonasse. Ela chegou tarde e bêbada.
- Aonde você estava?
- No mesmo lugar onde você passa todas as noites.
- Não me provoque, Andreia.
- Me deixa - disse ela quando tentei agarrar-lhe o braço, pois era nítido que ela mal se aguentava em pé.
- Onde você estava?
- Dando – respondeu ela.
Naquele momento eu senti tanto ódio que sem pensar duas vezes, vi meus punhos cerrados irem de encontrou ao seu rosto. Ela tombou desacordada no chão. E eu que estava enlouquecido de raiva, chutei-lhe muitas vezes, desacordada. Por fim, cansado, voltei ao quarto, troquei de roupas e fui a casa de Sara, onde passei a noite. Ela me perguntou sobre Andreia e eu disse que não sabia.
Na manhã seguinte fui da casa dela, direto para o trabalho. Trabalhei duro aquele dia, quando saí, à tarde, fiquei em dúvidas sobre para onde ir, se para minha casa, ou para casa de Sara. Por fim, resolvi ir embora para casa. Abri a porta, confesso que eu houvera passado todo aquele dia pensando no que fizera na noite anterior.
Abrindo a porta dei com o corpo de Andreia estendido no chão, no mesmo lugar onde eu o deixara na noite anterior. Aproximei-me e toquei sua pele, gelada. Eu a matara. Sentei ao seu lado e comecei a chorar e gritar. Eu era um monstro. Não demorou o primeiro vizinho aparecer, logo depois, outro e minutos depois eu saía algemado direto para o presídio. Fui condenado a dezoito anos de cadeia. Cumpri somente sete. Quando sai, ainda pesaroso por ter matado minha esposa resolvi andar. Dei o primeiro passo depois do portão do presídio e não consegui mais parar. Com os anos consegui amenizar a dor e a culpa que sentia, mas nunca mais pude viver.
Andei muito. Durante anos.
Uma noite eu estava dormindo no banco de uma praça, quando uma voz grave me despertou. Abri os olhos e deparei-me com Valadão discutindo alguma cosia com um outro homem. Aproximei-me e estendi a mão.
- Os senhores poderiam me pagar uma pinga?
Valadão virou-se. Por um momento pensei que tivesse me reconhecido. Enfiou a mão no bolso da calça e deu-me uma moeda de cinquenta centavos.
- Esse é o pagamento por eu ter cuidado de sua mulher? – disse eu.
Valadão deu um pulo para trás e me olhou como se estivesse vendo assombração.
- Você?
- Sim, sou eu.
- O que aconteceu?
- Eu a matei.
- Mentira.
- Matei, fiquei sete anos guardado.
- Ela não prestava.
- Prestava sim.
- Era uma libertina, você não foi o primeiro com que ela me traiu. Descobri a sujeira depois que vocês fugiram.
O homem com o qual Valadão conversava, disse que tinha que ir. Valadão colocou as mãos no meu ombro.
- Ainda bem que você tirou aquela maldita da minha vida, senão quem a teria matado seria eu. Obrigado. Acho que lhe devo umas pingas. Venha, vamos tomar uma naquele boteco.
Terminei aquele dia no boteco. Eu havia, sem querer, sem planejar, voltado a minha cidade. Encontrar Valadão foi bom, descobri quem era Andreia, resolvi que não iria mais me martirizar pela sua morte. Minha mãe ainda morava na cidade. Voltei à sua casa.
Uma semana depois eu havia retomado a minha vida, uma mulher apareceu chamando minha mãe. Era uma mulata linda. Perguntou-me quem era eu.
- Por favor, diga a sua mãe que a mulher do Valadão veio buscar a revista, peça que a leve a minha casa amanhã.
Era a nova esposa de Valadão. Senti meu coração bater mais forte. Acho que me apaixonei.
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