III
Era uma bucólica manhã de Domingo (quem quiser consultar o dicionário pode consultar, eu não faço a menor ideia do que significa bucólica, utilizei-a querendo dizer uma manhã com ar de manhã no campo, não sei se é isso). Eu acabara de abrir a Farmácia. Esqueci-me de dizer que eu era farmacêutico, na verdade, atendente de balcão de farmácia. E que vida é essa? Ficava todo o dia, todos os dias, atrás de um balcão, ouvindo aquelas velhas com suas intermináveis conversas sobre doenças. Os males sempre as matariam. Mas nunca matavam. As velhas continuavam vivas, eu continua a ter que ouvi-las falando que já não conseguiam cagar, sentiam dores no pé da barriga, precisavam de alguma coisa para as suas malditas dores de cabeças, dores nas pernas, nas costas, até dores no rabo... não é exagero, pode apostar.
Há menos de três meses eu estava trabalhando na farmácia. Não gostava daquele serviço, na verdade, não gostava de serviço algum, mas como comer é preciso e dinheiro é necessário, sacrifiquei-me ao trabalho exaustivo.
Naquela manhã de Domingo, ao erguer a porta, tomei um susto daqueles. Eu havia passado a noite bebendo, estava de ressaca ou ainda bêbado, não sei precisar, o fato é ao jogar a porta para cima, alguém chegou pelas minhas costas.
- Romeu, você precisa ir à minha casa agora, meu denguinho está mal.
Pelo tom da voz, a frase poderia ser mais ou menos assim: - Romeu, seu cabra filho de uma rapariga, trate de ir agora ver a merda da minha esposa que está lá com o pé na cova.
Virei-me instantaneamente. Deparei-me com uma parede chamada Valadão. Eu nunca tinha conversado com ele, nem me aproximado o suficiente para saber que o homem parecia um muro de tão grande. Seus ombros erguidos, a camisa aberta no peito, a saliência na cintura era uma faca ou um canivete. Não pensei que ele estivesse com má intenção, isso não. Era comum ver aquele homem armado dia e noite, alegava à Polícia da cidade, isso não era mentira, o trabalho dele exigia faca, era castrador, vivia pelas fazendas castrando os pobres animais que nunca poderia conhecer o gosto de uma trepada.
Eu sorri sem graça. O medo era aparente em minha cara, tanto que ele sorriu, certamente tentando ser simpático. Mas o brilho de um ou dois dentes de ouro deixou-me mais aterrorizado. Entrei na farmácia para tomar um copo de água e recuperar-me do susto. Ele entrou logo atrás.
- Olha, você não está entendendo, preciso que você vá lá agora.
- Sim, claro. Vou. Só preciso esperar o Vicente chegar.
- Não temos tempo, pode ser tarde para o meu Denguinho.
Tomei o copo de água e o encarei. Seu olhar era bruto. Vê-lo tentar ser carinhoso com aquele jeito rústico pareceu-me muito engraçado, só não ri por causa do medo.
- O que ela tem?
- Febre, muita febre, no mesmo tempo que está com frio está com calor. Não quer comer, a bichinha. Dá até dó de olhar para ela.
- Vou preparar uma injeção e vamos lá.
- Eu espero.
E esperou mesmo. Sentou-se num banquinho, ficou assobiando uma música que eu nunca ouvira em minha vida. Na verdade eu estava tentando ganhar tempo para que Vicente chegasse e fosse no meu lugar. Eu não queria correr o risco de adentrar a casa daquele homem. Vicente era um homem velho, não correria muitos riscos na mira de Valadão. Comecei a abrir e fechar os armários onde estavam os remédios, só para dizer que estava procurando algo. O telefone tocou. Atendi. Era o Vicente:
- Romeu, não vou poder ir à Farmácia hoje pela manhã. Você dá conta do recado sozinho?
- Claro, Seu Vicente.
- Amanhã de manhã estarei aí.
- O único problema é que tem um cliente querendo que eu vá olhar sua esposa que está muito mau. Eu não tenho como negar, vou fechar a farmácia e ir até lá.
- Faça isso. Agora, por hoje, não conte comigo.
Eu não tive saída. Preparei alguns remédios, caso fosse uma inflamação na garganta ou coisa parecida. Peguei a valise, fiz uma oração e saí de detrás do balcão. Valadão me encarou com cara aborrecida, mas não disse nada.
- Podemos ir.
Eu estava ansioso, ao mesmo tempo, temeroso. Temia que os meus olhos me traíssem. Se Valadão pensasse que eu estava indo à sua casa ver sua mulher... eu ouvia histórias sobre os ciúmes doentio dele. Vendo o tamanho do homem, assim, de pertinho, é de fazer qualquer um se arrepiar e pensar duas vezes antes de se engraçar com sua mulher. Mas ele, na verdade, não parecia preocupado com minhas intensões, parecia muito mais preocupado com sua esposa. Andamos alguns quarteirões. Chegamos a uma casinha azul. O cara tinha um Rottweiler no quintal. Ele segurou o cachorro. Entrei correndo em sua casa.
- Cachorro para mim tem que impor respeito senão para que serve?
Concordei com a cabeça.
A casa estava com cheiro de limpeza. Andreia era uma mulher extremamente higiênica, mesmo queimando de febre, tivera ânimo para limpar a casa.
- Pode entrar aí, Doutor – disse-me Valadão conduzindo-me ao seu quarto.
- Sou Doutor, não. Sou apenas atendente de farmácia.
- Que seja, para mim é doutor do mesmo jeito.
Isso é uma coisa típica de cidade pequena, as pessoas têm mania de ver os farmacêuticos como médicos. Acreditam tanto nesses pseudo médicos que raramente vão ao médico de verdade para diagnosticar-lhes algum mal, veem à farmácia, pedem um diagnóstico e se notam que o farmacêutico ficou em dúvida, perguntam:
- O senhor acha que devo ir ao médico?
Se o farmacêutico achar que é melhor, eles vão, senão não.
Valadão levou-me ao quarto onde Andreia estava. Uma grande cama de casal, um guarda-roupa e uma mulher gostosa era tudo o que havia no quarto. Ao me ver, Andreia sorriu sem vontade. Estava deitada, coberta por um lençol fino que me permitia ver um pouco do seu corpo. Nada tão excitante, mas sem sombra de dúvidas, o mais perto que um homem daquela cidade chegara da mulher de Valadão sem morrer por isso. Pedi que abaixasse o lençol para eu auscultar-lhe o peito. Quando o fez, mostrou-me uma camisola transparente, não usava sutiã. Levei a mão ao seu peito, ouvi a voz de Valadão esfriando os ânimos.
- Ô, Doutor, vai com calma aí, a mulher tem dono. Não queira ser engraçadinho, hein!
Olhei-o, mas não disse nada. Era nítido o quanto ele se esforçava para ver um homem tocar em sua mulher. Estava se remoendo de ciúmes, se não avançou sobre mim foi porque eu era a salvação de sua esposa; caso contrário, eu estaria morto.
Amanhã tem mais
Nenhum comentário:
Postar um comentário