Já ouviu falar sobre aquela antiga lenda que conta que quem passar por debaixo do arco-íris se homem, vira mulher, se mulher, homem? A lenda eu já conhecia, mas nunca soube de um caso real. Meu Deus, imagine-se acordar de sexo trocado? Posso assegurar-lhe, qualquer coisa que pense, será pior. Dá uma sensação de perda, não só pelos documentos. Ser uma mulher! Logo eu! Dá para enlouquecer, não?
Quando, novamente, despertei estava só, dentro de uma barraca, apalpei-me na esperança de que tudo não tivesse passado de um sonho. Qual sonho? Era um pesadelo real. Logo comigo! Dizem que homem não chora, pois lhe digo que basta transformar-se em mulher parece nuvem carregada, chora. Chorei, gritei, esperneei, pedindo a Deus, ao Diabo, a mil deuses que me livrassem daquele pesadelo. Logo, preferi me calar. Minha voz aguda irritava-me. Fim da sessão choro, levantei-me tentando entender o ocorrido. Nada. Minha mente poluída, confusa, tentava manifestar-se excitada. Veio a depressão. Sentado, a cabeça encostada aos joelhos, fiquei quieto, esperando, talvez, um milagre. Mas nem sinal do afortunado milagre. Logo chega o Grego.
- Oi, gata, está melhor?
Assédio! Meu amigo como é horrível ser homem na pele de mulher assediada. Homem é um sujeito ordinário! Acredita que o desgraçado olhava-me com cara de maníaco, mordendo os lábios. Que ódio! Se pudesse matava-o. Ajoelhado a minha frente, passou as mãos em meus cabelos. Eu, quieto. Sua mão boba desceu para meu rosto e depois meu queixo, meu pescoço, foi descendo.
- Para. Estou te avisando.
- Claro, gata, mas fala aqui pro seu amigo dos peitos... Quer dizer, do peito; quem é você? O que te aconteceu? Fala. Sou todo ouvido.
Que dúvida cruel! Não sabia se lhe dava um murro, chutava-lhe o traseiro, ou chorava. Ele segurou minhas mãos, fingindo solidariedade, disse meia dúzia de asneiras e, aproveitando meu silêncio, conduziu minhas mãos ao seu peito cabeludo. Encarei-o com raiva. Aproximando-se, empurrou-me contra o chão. Senti seu corpo cheio de músculos sobre o meu frágil corpinho feminino. Nunca dê atenção a homem safado, em dois segundos ele está nu, em três, você está perdida. Sabe que comigo a história é curta. Bati-lhe com um tijolo que estava ao alcance das mãos, certeiramente, na testa. Sangue escorrendo, pôs-se a gritar alarmado e a avançar sobre mim. Na raiva, teria me matado.
- Sua piranha vou dar-lhe uma lição.
- Não, para, seu retardado, dou-lhe uma surra. Tá esquecido da Ana Luísa? Quer outra?
- Como sabe dessa história?
Todo mundo tem um ponto fraco. Aquiles, o calcanhar; Sansão, os cabelos; Grego, a surra que levou da Ana Luísa, uma meninota brava igual cão. Foram tapas e chutes para todos os lados. Coitado do meu amigo que saiu numa ambulância, implorando para que não contássemos a história a ninguém.
- Por favor, chama todo mundo, tenho algo para contar.
Surpreso e intrigado saiu, voltando, encontrou-me vestido ou vestida. Que dúvida cruel. Notava-se que as roupas não foram feitas sob medida àquele corpo tão pequeno, mas, assim, sentia-me melhor. Por fim, todos ali, aglomerados, esperavam meu pronunciamento, eu hesitava, na verdade, tudo era tão fabuloso, difícil de explicar. Se fosse tudo um sonho, uma ilusão? Já ouviu falar de pessoas que vivem uma fantasia e não conseguem se desprender. Talvez, eu fosse um homem adormecido, sonhando ser uma mulher, ou, uma mulher sonhando ter sido um homem àquela manhã. Ser ou não ser? Tudo aquilo era difícil de entender, que se diga, explicar. Mas aqueles olhos ansiavam por respostas. Havia outro problema, depois que tudo aquilo fosse resolvido, iam me crucificar. Que vergonha! Não podia correr o risco.
- Gente, sou pesquisadora. Meu nome é... é... Andreia. Hoje de manhã um idiota alto, moreno, forte, roubou meu jipe e minhas roupas, falava de noivado, amor, despedida de solteiro e não me lembro do que mais.
- Será que era o André?
- Quem é André?
- Nosso brother que desapareceu hoje de manhã. Quando acordamos só encontramos suas roupas, dele, nem sinal.
- Devia ser ele sim, o homem que me atacou estava nu.
Aonde eu queria chegar? Sabia que era necessário mentir, pelo menos, até encontrar uma solução. Sozinho não iria ficar. Não podia ir embora, tive que usá-los. Inventei dúzias de mentiras, asneiras, eles, aliviados, pensando que o amigo desaparecido, na realidade, tinha fugido para os braços da noiva, voltaram à festa. Havia muita carne e cerveja. A noite se aproximava. Quem sabe amanhã quando acordasse tudo não voltaria ao normal.
Afastado da roda de embriaguez, fiquei olhando a cachoeira banhada pela luz da lua. Ainda me sentia estranho. Aquele corpo de garota propaganda era meu martírio. Havia de existir uma forma de voltar ao normal, apegava-me a esse consolo. Nesse mundo existe alguém com a resposta, o antídoto. Se no dia seguinte não visse uma solução, era ser paciente e procurar. Meu maior medo, acho que não era o de nunca voltar a ser homem, era o de ter de ser sempre uma mulher.
- Posso me sentar, era a moça que me fizera companhia na noite anterior.
- Claro! Por favor. Como você se chama?
- Rita.
- Por que não está festejando?
- Estou sobrando. Ontem passei a noite com aquele imbecil que lhe roubou o jipe, o tal André. Cara prepotente! Acho que pensa que somos depósitos de lixo, empurra-nos toda a sua imoral. Mas, não somos tudo isso que falam, temos sentimento, carência, amor próprio. Eles sempre acham que abrimos as pernas por prazer, eu sei que não. Minha vida é um lixo, não consigo emprego e tenho um filho para sustentar. Há solução? Você sabe que ser mulher é um problema.
- Posso imaginar! Mas o que fazia antes disso?
- Era escrituraria, dei um fora no meu patrão, fui pra rua e não consegui arrumar outro serviço.
Necessariamente, havia nascido em mim um sentimento novo. Pela primeira vez eu queria ouvir o que uma mulher tinha a dizer. Sem demagogia, entendê-las. Eu poderia ser uma mulher para sempre ou poderia voltar a ser homem, um homem diferente, talvez. A vida nos ensina muita coisa. Se é só? Pode ser! Olhe para mim e diga-me se acredita nessa história.
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