- Pega, Ladrão!
A frase ecoou por toda a movimentada rua. O Camelô segurou por um instante a respiração, até ver aquele homem uniformizado gritando no meio da praça, no segundo seguinte ele recolhia sua banca e saia correndo por entre os transeuntes. O homem de maleta preta na mão não esperou ouvir o segundo grito e saiu correndo pela praça derrubando uma senhora que vinha capengando de uma perna. O engraxate, esse sim, sentiu gelar a sua espinha. Sabia o que era ir parar na delegacia e ser interrogado pelo Doutor Bento, o delegado que ele conheceu muito bem. Não queria uma segunda experiência. Deixou a sua caixa com as graxas e um homem que estava sentado na cadeira em frente e saiu correndo pela praça como um louco. Pulou por cima de uma mureta e caiu num canteiro de grama. Não tinha nem coragem de olhar para trás e ver quem o seguia. Era ele. Podia sentir que falavam dele quando ainda longe ouvia o policial gritar – Pega ladrão. Atravessou a avenida numa correria, às cegas, e quase foi atropelado por uma camioneta que passava a toda velocidade. Cambaleou, mas continuou correndo. Trombou contra uma senhora de bengala que vinha atravessando a calçada. A velha caiu. Ele não se importou, não era hora de ter educação, era hora de fugir.
Ouviu a sirene do carro de polícia, aí, sentiu-se Hermes, seus pés ganharam asas e ele voou mais rápido ainda. Precisava chegar a um lugar seguro. Mas onde era seguro? Pensou na sua casa que ficava no alto do morro, sabia que aquela hora tudo deveria estar cercado pela polícia. Não podia voltar para casa. Passou a mão na testa suada, sem parar nem um milésimo de segundo. Quando criança ele sonhara em ser corredor, mas não corredor da Polícia, sonhava em disputar provas de velocidade, sempre fora o mais rápido dos seus amigos, sempre os vencia na carreira. Quando tinha dezoito anos, começou a traficar, tudo mudou, ele tinha que correr para garantir a integridade de sua vida, para garantir sua liberdade. Descobriu que podia ser o Papa-Léguas do Brasil. E corria. Sempre que corria vinha a sua cabeça a imagem daquela ave muito esperta fugindo de um coiote faminto e obcecado. Era engraçado. Sempre rira tanto com aquele desenho. Mesmo depois de casado com Maria Dulcilene, sua mulata safada, ele, assim mesmo, sempre que podia, parava para ligar a televisão e assistir àquele desenho. A mulher reclamava, dizia que lugar de homem era na rua, trabalhando, ganhando dinheiro para sustentar sua família, afinal, seu filho estava a caminho, dizia a mulher ostentando aquela enorme barriga. Sabia que ela estava certa, mas não era pecado se divertir um pouco, rir um pouco, afinal, a vida real era algo tão sem graça que ele usualmente não sabia que sorrir era possível.
Enquanto corria pensava em todos os seus crimes, não era nada demais, fora a maconha que ainda distribuía e usava, não havia mais nada em sua ficha, parara com a coca, não roubava há mais de ano, não furtava, não matava, aliás, pensando bem, ele era quase um bom católico, não fazia nada que todo o mundo não fizesse. Era um cidadão legal, só não podia dizer que pagava seus impostos em dia, porque isso não fazia mesmo. Sua casa era um barraco onde se escondia de tudo e de todos, roubava energia elétrica dos fios que passavam em frente ao barraco, a água era um gato e, até mesmo a TV a cabo, era roubada. Mas afinal, isso não era roubo, isso era coisa de brasileiro esperto. E ele nem mesmo aproveitava a TV a cabo, tinha roubado o sinal apenas para assistir aos jogos da Seleção na Copa do Mundo. Mas a Copa acabara há muito e ele quase telefonara à empresa de TV a cabo para que eles viessem desinstalar o seu gato, mas acabou deixando o cabo que vinha lá do pé do morro, caído no meio do quintal. Tão raramente ligava a TV que nem sabia mais se a TV a cabo funcionava. A sua negra, também não ficava em casa. E depois que ela se fora, a casa passava todo o dia entregue às traças.
Ouviu a sirene da viatura ao seu lado, acelerou mais ainda, virou pela rua do presidente e entrou por uma escadaria que levava ao topo da igreja de Santo Antônio. Subiu as escadarias ultrapassando pagadores de promessas e camelôs desprevenidos. Derrubou uma barraca de lembrancinhas e pediu perdão ao santo das pulseirinhas, mas não parou de correr um só instante. Lançou um único olhar àquilo que ficava para trás, o que importava era fugir, era escapar das garras da Polícia. Não importava se ele devia ou não algo. Não importava se era quase um cidadão de bem, ainda tinha a pele negra e isso era motivo mais do que suficiente para enfiá-lo atrás das grades por pelo menos um mês. Escalou os muros da casa paroquial que ficava ao lado da igreja e caiu em um gramado verde. Um padre gritou assustado e correu para dentro da casa, esbaforido, levantando a batina preta. O fugitivo não ligou à mínima, atravessou o gramado, escalou o outro muro e pulou para a casa vizinha. Lá havia um cachorro preto, enorme, que avançou sobre ele. As pessoas sempre acham que estão protegidas dentro de suas casas se tiverem um cachorro. O cachorro avançou sobre ele, simplesmente, sem medo algum, deu com o punho fechado no focinho do animal que desmontou no chão. Técnicas de judô contra cachorros. Aprendera com um seu amigo que frequentava aulas numa academia no centro, fora muito útil quando ainda furtava imóveis vazios. Adquirira uma experiência tamanha, não errava o alvo de forma alguma. Depois que aprendera a se defender de cachorros jamais tomara uma mordida sequer. Havia enfrentado até mesmo pitbuls e saíra vitorioso. Vivendo e aprendendo, sempre.
Pulou o muro novamente e saiu numa rua pouco movimentada. Não ouvia mais o barulho de sirene. Ninguém mais gritava. Escapara? Enxugou o suor da testa, parou por um instante para respirar, sentia, agora, o cansaço pelo esforço. As pernas doíam, todo o seu corpo transpirava. Encostou-se numa árvore. A rua estava quase deserta e ele desesperado para urinar. E ali mesmo urinou. A êxtase do momento não lhe permitiu notar uma viatura da polícia que passava fazendo ronda, com as sirenes desligadas. Os policias viram aquele homem em atentado ao pudor. Encostaram silenciosamente a viatura. O homem nem sequer olhou para eles. Desceram com as armas em punhos:
- Parado aí, safado.
O homem entre parar de mijar e fugir, ficou no meio termo, tentou correr enquanto urinava nas calças presas aos seus joelhos. Caiu, ralou o rosto e foi rendido pelos polícias que o conduziram ao distrito onde encontrou o Doutor Bento novamente.
Valdir Bressane
Um comentário:
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk muito bom!!!
rsrsrs
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